quinta-feira, 10 de setembro de 2009

- Zé Balinha e os artifícios vigentes;

Era José Mário da Bala, José Mário de nascença e o resto dos botecos de São Paulo. Sustentava-se como funcionário da Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos, e trabalhava de cinco a sete horas por dia, com variações, alternando entre o sono e a sede da tarde. Conhecia a periferia e certos brejos do centro, graças às andanças que o ganha-pão lhe provinha. Três de seus trinta e dois anos - glamourosos anos, como costumava dizer - foram dedicados à EMTU, os dois primeiros como motorista, agora como cobrador. Anunciava as maravilhas do ofício como se fosse rei das ruas da metrópole, e conhecesse cada andar de seus prédios culminantes, ou prevesse suas chuvas e enchentes abundantes do verão. Com o tempo e a praticidade nata do trabalhador, desenvolvera uma habilidade instintiva para com o negócio. Dormia facilmente com as chacoalhadas do ônibus, o fechar de olhos se tornara um processo natural. Mas, à primeira pisada no freio do motorista, alertava-se e ali estava, pronto para as contas e o dinheiro, tanto que parou de dormir à noite - lhe faltavam os trambolhões. Tinha quatro filhos, dois meninos e duas meninas, porque acreditava no amor e não em Deus. A esposa, Maria da Anunciação, o chamava de Zé Balinha, assim como os íntimos, e a cada filho deram o nome de seus pais e mães. Arminda, Marta, João e Clauzins estudavam na escola pública ao lado de casa, e José Mário os via só à noite, e na missa aos domingos. Era cristão por conveniência, para evitar que Maria lhe falasse sobre os pecados e o coisa ruim. Conheceram-se e casaram-se na capelinha de Santa Efigênia, duas ruas acima da residência modesta, e José Mário virou cristão para que ela o amasse. Não tinha fé no céu, no inferno ou na danação eterna, só queria morrer de velhice, e ser enterrado num daqueles caixões sem estofado que lhe lembrassem o ônibus, para que pudesse descansar em paz, e sonhar com vaivéns. Diria-se no epitáfio: Aqui jaz José Mário da Bala, rei das ruas, que dorme sacolejando. Pareceu-lhe adequado dizer isso à mulher, que pestanejou e piscou os olhos ignorantes, sem entender, mas prometeu cumprir o que lhe dissera. Mal sabia Zé Balinha, ou tampouco Maria da Anunciação, muito menos Arminda, Marta, João e Clauzins, que a morte o levaria cedo, num dia de verão da semana seguinte, por um acidente envolvendo o ônibus do ofício, um prédio culminante, uma enchente fatídica e alguns pedestres, na frente da sede da EMTU, ao final de trinta e dois glamourosos anos de império metropolitano e descrença cristã.