segunda-feira, 27 de outubro de 2008

- capítulo um;

Sarah vislumbrava o mar aberto à sua frente. Ele parecia pronto para abraçá-la, e ela suprimia a vontade de jogar-se a ele, ínfima, em meio às ondas imponentes; apenas uma peça simplória daquela imensidão. A praia calma reduzia-se a uma linha rosada e distante, à medida que a canoa de madeira se afastava rumo ao norte. O remo pesado afrontava as águas, impulsionando a canoa para frente. Sarah permanecia de pé, equilibrada, os olhos semicerrados pelo sol, mirando o horizonte, uma linha contínua azul-marinho, interrompida apenas pelo vulto de uma ilha.
Seu pequeno corpo vibrava de ansiedade. Apesar de seus dezesseis anos, sua aparência tapeava as pessoas; o rosto infantil e o corpo não desenvolvido contradiziam sua mente amadurecida. A pele morena, marcada pelo Sol, parecia ter brilho próprio; os cabelos desgrenhados presos num coque baixo enalteciam seu rosto quadrado e seus lábios robustos.
A ilha parecia mais próxima agora. Sarah sabia que a aparente proximidade era enganadora, e que demoraria muito ainda para chegar em seu destino; permanecia despreocupada, planejara e estudara por muitos anos essa pequena travessia. Não ia se desesperar agora.
Contrastando com a suavidade das águas contornando o remo, um obstáculo chamou a atenção de Sarah. O instrumento colidira com algo resistente e preso à areia; mesmo tão distante da maré, a praia era famosa por isso, sua profundidade ia aumentando vagarosamente, tanto que Sarah quase que poderia alcançar o chão se pulasse. Fincou o remo na areia para que a canoa parasse. Olhou para os dois lados, examinou o fundo, atenta. Então, despiu-se.
Sua roupa de fibra leve e rica seria inútil e incômoda nas águas. Por baixo, roupas velhas e escolhidas para a necessidade de entrar na água. De súbito, mergulhou habilmente no mar, e a água lambeu carinhosamente seus cabelos; aos poucos o corpo ajustava-se à temperatura fria; ela não sentia dificuldade em abrir completamente os olhos. Dirigiu-se sem pressa ao obstáculo, segurando a respiração sem dificuldade. Apenas um pedaço era visível; a maior parte da caixa de madeira escura estava soterrada. Sarah tirou uma pequena lâmina que trazia amarrada à cintura, pôs-se a cavar rapidamente; com um grande esforço pôde retirar a caixa inteira. Voltou à superfície, a caixa segura em suas mãos, surpreendentemente leve. Subiu na canoa e procurou por um fecho na face frontal da caixa, decorada habilmente com flores e arranjos. Não havia nenhum.
Esquecera de seu objetivo, ansiosa para examinar a caixa; esquecera que não dispunha de muito tempo. Logo, vozes masculinas fizeram-se ouvir; e, ao olhar à sua volta, percebeu o que a curiosidade lhe custara: mais uma tentativa perdida.Cinco barcos com três homens cada um a rodeavam, e um deles já havia amarrado uma corda ligando seu barco à canoa de Sarah. Não fizeram perguntas, Sarah já sabia o que faziam ali. Suspirou, frustrada, e resistiu ao impulso de lançar aquela caixa ao mar. A canoa foi puxada pelo barco, não para o norte, não para o seu destino; mas de volta à sua simplória existência na praia.

*
Jad sucumbiu ao choro. Seu rosto já marcado pelo tempo contraiu-se; suas mãos enrugadas tremeram, seus olhos miúdos molharam a face. Ela olhou para o marido, desesperada.
- Mandou todos os seus homens?
- Mandei – a voz dele revelava impaciência.
- Mandou procurarem em direção à ilha?
Apenas um murmúrio de afirmação como resposta; marcado pela frieza desumana que se via em seus olhos. Nenhuma palavra de carinho ou consolo, apenas sua presença insípida; irredutível.
- Acha que vão encontrá-la, Marcel? – disse Jad entre soluços, ávida por uma palavra de esperança.
Um suspiro cansado. Nenhuma emoção.
- O mar é grande.
- E se ela chegar na ilha? E se ela encontrar... – Jad parecia aterrorizada em pensar na hipótese.
- Chega, Jad – não era um pedido, tampouco algo para tranqüilizá-la; ele apenas desejava que ela parasse de perturbá-lo.
- ... o que será de nós, meu Deus? – ela pareceu não ouvi-lo.
Marcel chutou o pequeno banco de madeira à sua frente. Seus olhos incharam de fúria incontida.
- Cale a boca! – ela olhou para ele como se acabasse de perceber que ele estava ali. Suas lágrimas rolaram sozinhas. Levantou-se.
- Você se tornou mais frio e duro que uma pedra de gelo. Um monstro. Atroz como aqueles homens que tanto desprezava na guerra! – ela saiu sem olhar para trás, o corpo curvado pela velhice e sacudido pelo que restou de seus soluços. Marcel arfava. Suas mãos grossas permaneciam contraídas, mas seus olhos já não demonstravam nenhuma emoção.
Na sala contígua, Jad sentava na mesinha de centro, e rezava por perdão a um Deus que não acreditava mais; apenas pela carência de expor suas lamúrias. E pedia, sem fé, mais a si mesma do que a alguma divindade; que Sarah não chegasse àquela ilha.

*
Sarah desvencilhou-se do aperto do soldado no braço. Ele mantinha-se próximo demais às suas costas, e ela sentia seu cheiro podre de fumo e sua risada maliciosa. Ele a conduzia até a porta do lugar onde menos desejava estar; sua casa.
A mansão branca brilhava ao Sol que já descia no céu. O estábulo enorme do outro lado do lago não se comparava à monumental construção à sua frente, antiga mas renovada; em ótimo estado. Ao avistar a velha senhora correndo em direção à Sarah, o soldado se afastou. Jad abraçou a filha com fervor, mas ela ignorou o abraço; continuou impassível agarrada à caixa já seca pelo Sol.
Jad conduziu a filha ao seu quarto, e a deixou sozinha. Sarah deitou-se em sua cama, frustrada; enfiou a caixa na gaveta de sua penteadeira e suspirou. Podia até contar os segundos que faltavam. A porta se abriu com estrondo. Seu pai, cheirando a uísque e tomado pela fúria, avançou para ela com uma cinta na mão.

*
Naquela noite, Sarah não dormiu. Suas pernas ainda ardiam com a surra que levara no final da tarde. A Lua já ia alta no céu, mas seus olhos bem abertos examinavam a caixa à sua frente. Fechada. Nenhum cadeado. Apenas uma tampa pregada à caixa tão fortemente que nenhuma fresta lhe era perceptível. As cabeças dos pregos afundados na madeira estavam enferrujadas, e Sarah perdera horas limpando todo o limo que encobria a caixa.
Vasculhou suas coisas, mas não encontrou nada que pudesse abrir o pequeno baú; desceu pé ante pé as escadas cobertas de veludo vermelho, e saiu pela porta dos fundos da cozinha; sem fazer o menor ruído, a caixa aninhada em seus braços frios.
Respirou o ar fresco da noite. Sentiu a grama roçar seus pés descalços, ouviu o murmúrio incessante dos grilos; pressentiu o cheiro de jasmins. Aproximou-se do lago, que lhe parecia um grande espelho imóvel, reverenciando a Lua; o contornou, em direção ao estábulo. Distinguiu, no escuro, o vulto da oficina de seu pai, contígua à construção de madeira clara.O estabelecimento cheirava a mofo. Sarah prendeu a respiração enquanto acendia o pequeno lampião pendurado na porta encostada; entrou silenciosa na oficina, em busca de alguma ferramenta útil. Não teria coragem de serrar a caixa, precisava de um pé-de-cabra ou algo parecido... abriu inúmeras caixas de ferramentas situadas nas prateleiras atrás do balcão, mas não encontrou nada que servisse. Desanimada, abriu um armário encostado entre a porta e o canto da parede; seu rosto brilhou de alegria ao encontrar um grande pedaço de ferro moldado exatamente como precisava; apoiou a caixa cuidadosamente no balcão e pegou o ferro com as duas mãos. Precisaria de muita força. Pegou um serrote no meio da sessão de marcenaria, abriu uma pequena fresta onde pudesse encaixar o ferro. Colocou a caixa no chão, posicionou-se, e encaixou a ponta do pé-de-cabra na fresta aberta pelo serrote. Pressionou para baixo, apoiando todo o seu peso. A caixa rangeu.
Pressionou de novo. Sentiu a tampa levantar um pouco.
Respirou fundo, tirou os cabelos suados do rosto. Pressionou mais uma vez.
A tampa da caixa voou, foi parar atrás do balcão, fazendo estardalhaço. Sarah agarrou a caixa e correu atrás da tampa, ágil; seus passos leves estavam acostumados com a noite. Em alguns minutos, estava de volta ao quarto, a caixa aberta sobre as mãos pequenas.
Sentou-se em sua cama, feliz por finalmente poder ver seu conteúdo. Ao vislumbrar uma pilha de papéis amarelados completamente preenchidos por palavras, a lápis, desapontou-se. Folheou-os, e leu a primeira folha.

“Ela será fruto de uma história de amor.
Será morena, bonita, com lábios carnudos e cabelos presos.
Participará de vários tipos de misticismo, mas nunca acreditará em nenhum deles.
Saberá se comportar diante dos outros, mas terá medo da intimidade.
Será egoísta, e seu orgulho será um mártir.
Mentirá, e suas mentiras a aprisionarão.
Seus arrependimentos serão seus castigos.
Sofrerá, mas também será feliz.
Presenciará desgraças, mas nunca se tornará uma pessoa amarga.
Terá uma vida marcada por segredos.
Temerá a morte, e todos os desconhecidos.
Terá piedade, ansiedade e nunca conhecerá a paz.
Demorará a conhecer o amor, e quando o conhecer, não saberá usá-lo.
Será criada sob o gelo, mas nunca perderá a esperança.
Amará a magia, as histórias infantis e o sol.
Aprenderá a muito custo que nem todas as histórias têm um fim concreto, a maioria se perde no começo de outra.
O passado será o seu maior inimigo.
Escolherá a ignorância à ciência das verdades terríveis.
Verá tempestades em garoas, chorará lágrimas inúteis.
Sorrirá de verdade pela primeira vez aos dezessete anos.
Desafiará o destino.
Morrerá tarde demais.”

Uma assinatura marcava o final daquela profecia, legível e simples.

”Marise”.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

- prefácio;

“O silêncio é uma obra divina”, pensou Marise. Seus olhos fechados escondiam asatisfação estampada em seu rosto. O frio, o escuro; as reflexões fluíam como água; o instante. O cheiro perdido no ar limpo. A sintonia.
Abriu os olhos. Vislumbrou o papel em branco à sua frente. O que viria agora?
Pôs-se a escrever. A sua mão morena voava de um lado para o outro, mas sua caligrafia permanecia inalterada pela pressa; uma idéia se sobrepondo à outra, frases interrompidas, palavras riscadas. A ponta do lápis roçando o papel, o pó do grafite manchando suas mãos; podia descrever tudo com detalhes, cada sensação descrita em sinestesia, podia sentir tudo.
A história surgia inconstante, um embrulho disforme de informações jogadas, com um único sentido implícito, perceptível, embora inconscientemente. O exílio acarretava um sentido contrário do esperado, a paz e todas as suas conseqüências. Marise o procurava em todos os momentos do dia, obtendo apenas aqueles instantes em seu quarto. Breves, e densos. Muito breves.
O sorriso se formara em seu rosto. Já estava na hora de desmanchá-lo.
- Marise! – a porta se abriu de súbito.
O lápis caiu no chão, a folha incompleta, uma palavra na metade. Marise sentiu o gosto da raiva na boca.
- O que foi?
O rosto da freira não demonstrava maior satisfação.
- Espero que essa folha não seja o que eu penso.
- A senhora pensa?
- Basta de suas grosserias, Marise! Dê-me o papel!
Marise sabia que seria inútil insistir. Sua mão tremia quando entregou a folha a Irmã Sofia.
- E da próxima vez que você perder a missa escrevendo essas baboseiras imorais...
Ela pareceu engolir o resto da frase. Saiu, batendo a porta, não sem antes pegar o lápis do chão e guardá-lo no bolso de suas vestes.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

- quarenta e três anos!

Eu larguei a televisão e o sofá, ignorei os protestos do meu corpo cansado, e vim aqui. Apesar da minha promessa de que iria dormir o dia todo hoje, uma história se formava na minha cabeça, e eu precisava começá-la. Eu abri o Word, pois estava tão inspirada que seria capaz de escrever duzentas páginas tão rápido quanto minhas mãos permitissem.
"E agora, o que está acontecendo comigo?"
Foi como se eu tentasse segurar água com as minhas mãos (peço desculpas pela metáfora poética, mas eu acabei de ler um livro sobre uma fantasia épica e estou impregnada). A história, a inspiração, tudo passou como se alguém tivesse apagado tudo da minha mente. Tudo se foi, menos a vontade de escrever.
Tá, sem dramas. Eu nunca tive dificuldade em escrever. Sempre que eu pensava, eu escrevia; eu formulo frases sobre meu cotidiano ao longo de cada dia, na minha cabeça. É tudo uma coisa só. E, como eu ainda não perdi a minha capacidade de pensar, alguma coisa estava errada, certo? Bom, o que importa é que eu já tinha até esquecido a minha história e estava absoluta e completamente frustrada. E eu odeio ficar frustrada, porra. É como se você pudesse ver um rio de idéias pra começar, e todas elas estivessem fora do seu alcance. Você pensa, parece bonito, e quando você escreve parece infantil. Diabos!
Aí eu liguei pro meu pai; digamos, que ele escreve monstruosamente bem (eu ainda posto algum texto dele aqui), e que é meio que a minha inspiração personificada. Hoje é o aniversário dele, e eu liguei pra ele pra perguntar o que estava acontecendo comigo (eu sou mesmo uma filha desnaturada). E ele me disse assim (não, eu não vou esquecer isso nunca): "Você perde as suas histórias por que não acredita que elas sejam realmente boas. Agora para de frescura e vai lá, escreve o que você tá pensando, pra depois você mostrar pro seu pai aqui que se orgulha de você".
Eu acho que essa história é uma daquelas muito fáceis de adivinhar o final.
E ah, eu pensei em fazer uma homenagem pra ele aqui, e então eu pensei que não haveria homenagem melhor do que essa; a maior fonte de admiração que eu tenho dele. E ah, a história? Não vou mostrar pra ninguém por enquanto. Mas está ficando grande.

(parabéns pai *-*)

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

- quarto 336;

George pegou algumas flores na floricultura da esquina e arrumou a gravata cinco vezes. Pegou uma colônia barata no porta-luvas e ensopou o pescoço. O cabelo bem arrumado não combinava com seus olhos cansados e precisando de sono, fato que ele constatou com uma rápida olhada no retrovisor. Animado pela proximidade da visita, ligou o carro.
Não usava o carro antigo já havia anos. O escort vermelho forte chamava a atenção das pessoas na rua não só por sua cor elétrica, mas também pela grande quantidade de fumaça que produzia e pelo barulho ensurdecedor que se alastrava por vários quarteirões. George bufou, satisfeito. Estava tudo perfeito; o cheiro de naftalina do paletó, a colônia barata, os cabelos puxados de lado, até os olhos cansados de quem acaba de ter um dia duro de trabalho. Ele só esperava que o carro conseguisse chegar até lá.
Dirigiu o mais vagarosamente possível, com os olhos lacrimejantes por causa da fumaça. Já era quase duas e meia da tarde quando inclinou o carro no estacionamento da clínica mais cara da cidade. Checou os sapatos, que já apertavam; impecáveis. Apertou o botão dez do elevador.
Apesar da cor amarelo claro do terno, que normalmente causaria comentários maldosos ignorados por George, ninguém parecia reparar nele. Ele adotara uma postura sorridente e convidativa, e, a cada andar em que o elevador parava, mais pessoas entravam; e nenhuma lhe dirigiu sequer um bom dia. Mas George era forte. Ele não ia desistir agora.
Saiu silenciosamente, de nariz empinado, quando chegou ao décimo andar. Seu olhar passou o primeiro corredor sem o mínimo sinal de reconhecimento, se demorou um pouco mais no segundo, cheio de saudade; e, por fim, ele virou no terceiro corredor à esquerda, apertando os nós dos dedos, tirando uma mecha grisalha do rosto. A diretora da clínica esperava-o na maior sala do corredor.
Ao vê-lo, ela engasgou-se com uma risada. George não levou a sério, risonho, e deu algumas voltas em torno de si mesmo para que ela pudesse apreciá-lo.
- O que seria esse.. figurino? - disse ela, os olhos apertados de divertimento.
- Era sobre isso mesmo que eu gostaria de falar com você, Roberta - disse ele, nem um pouco abalado, parecendo orgulhoso de si mesmo. A um sinal da diretora, sentou-se.
- O estado de Hilda não mudou nem um pouco. O que poderia te trazer aqui além disso? - ela sentou-se e assumiu a expressão mais séria que conseguiu no momento.
- É exatamente sobre o estado dela que eu gostaria de conversar.. Olha, Roberta, ela já está aqui faz três anos e ainda não me reconhece. Eu sei que pode ser até irreversível, mas eu acho que posso ajudá-la. Eu preciso. - ele passou a língua nos lábios secos. Roberta mordeu a língua.
- E vestir-se assim ajudaria Hilda como? - ele odiava a ironia que ela usava ao considerar as suas idéias, que foram tantas ao longo dos anos. Mas George sempre soube compreender, e, ao olhar as pilhas de papéis de cada pessoa que ela ajudava, ele aceitava, e sorria.
- Eu me vesti assim no nosso primeiro encontro. Até a colônia é a mesma, as flores.. a gente estava numa fase de festas estranhas, sabe? E eu acho que talvez, se eu a levasse até o lugar do primeiro encontro, até o carro é aquele antigo sabe, em que nós demos o primeiro beijo..
- Hilda não pode sair da clínica. Ela está sob cuidados médicos. - Roberta tivera um dia difícil.
- Ela está sob cuidados médicos faz três anos! E eu sou a única pessoa que ela não reconhece..
- Não podemos fazer mais nada, George, só esperar.
Ele sentiu-se impotente, fraco. Levantou-se e sua cabeça girou. Engoliu as lágrimas. George era forte.
Dirigiu-se de volta ao segundo corredor. Recompôs-se na frente da porta do quarto 336, olhando para o desenho que sua mulher, Hilda, fizera. Traços de criança. Depois de trinta e dois anos de casados, ela voltara a ser criança em alguns poucos minutos, naquele maldito dia em que a chuva arrastou o carro para um barranco. George escapara ileso. Observou a caligrafia infantil em que ela escrevera "casa" sobre a porta do quarto. Ela mal se lembrava daquele sobrado rosa claro que eles compraram depois de trabalharem em dois empregos cada um por seis meses, onde moraram por quase trinta anos. A clínica cinza, com vidros embaçados que mal deixavam que ela visse a rua, era sua casa agora..
Ele bateu na porta. A enfermeira o convidou a entrar, Hilda estava dormindo. Ela acordou ao ouvi-lo sentar ao seu lado.
- Larry?
- Oi, Hilda. Como você está hoje?
- Ah, eu senti a sua falta, Larry. Você me trouxe flores! - Seu rosto enrugado abriu-se num sorriso iluminado. A enfermeira deixou as flores em um vaso ao lado da cama, e saiu.
- Você está linda hoje, meu amor.. Mas nós não combinamos que você me chamaria de George?
- A enfermeira me disse que você é George hoje, Larry. Mas eu não me lembro de nenhum George. Eu me lembro de Larry.
- Eu sei, meu mel. - George fechou os olhos cansados, e tirou o paletó ridículo. Ela nem percebera.
- Mas sabe que a história que você me contou ontem era muito bonita? Eu não me lembro. Do que mesmo você falava? - seus pequenos olhinhos azuis faiscaram.
- Era a história de um homem que fazia sua mulher apaixonar-se de novo por ele todos os dias. E.. - ele parou. Ela estava com o olhar perdido, evidentemente perdera a atenção. George suspirou, e pegou a mão pequena e branquinha entre as suas.
- Você ficará comigo para sempre, Larry? - ela se aninhou entre seus braços. George a sentiu trêmula, e a apertou forte.
- Eu te amo, minha flor.
- Então você fica comigo esta noite?
- Até que você durma e sonhe comigo.
Não demorou muito, Hilda descansava, aninhada nos braços do seu marido, que, para ela, aparecera apenas três anos antes. George prometeu a ela que não a abandonaria, que faria com que ela o amasse de novo como amou naquele primeiro encontro. Mas ela não estava mais ouvindo.
Ao acordar, algumas horas mais tarde, Hilda sentiu que George não tinha ido embora.
- Você volta amanhã, Ben? - George acordou, sobressaltado.
- Mas é claro. Eu sempre voltarei.


(eu escrevi isso pensando numa frase que ouvi em uma música. "há mais histórias de amor do que o homem pode contar..")

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

- cuidado com o que deseja;

Por que na porra da minha família nada é normal?
Eu andava me perguntando isso ultimamente, e percebi que eu não estava falando de ser normal, estava falando de as coisas serem como nos filmes de drama bobos, os que dão certo no final. Eles realmente conseguem fazer a nossa cabeça.
Bom, mas, de qualquer forma, por que tudo na minha família é tão intenso? Eu sempre fui profunda e sempre gostei disso, mas tem horas em que eu preferia que tudo fosse mais superficial. É muito mais fácil de lidar com as coisas quando é assim. Com as coisas ruins.
Por exemplo, quando alguém te magoa. Nos filmes, esse alguém te pediria desculpas, te daria algum presente, e vocês viveriam felizes para sempre. Nada de ressentimentos. Mas na porra da vida real existem pessoas que quase nunca se machucam, mas, quando isso acontece, não é fácil. É daquelas vezes em que você tem que pensar e pensar em como pedir desculpas, em como fazer tudo voltar ao normal. Nada de draminhas. Merda.
Mas até que a minha história parece uma história de filme.
Eu sempre tentei conquistar o meu irmão. Quer dizer, depois daquela fase em que meninas e meninos não podem se dar bem, e daquela outra em que meu-irmão-nasceu-pra-me-perturbar. Depois disso, nós viramos amigos. Não assim, grudados, tipo best friends forever end éééver, nada de melações. A gente só deu de terminar os respectivos namoros ao mesmo tempo e precisar, e convenhamos que isso é bem diferente de querer, do apoio um do outro.
Ok, eu no início fiquei surpresa por ele ser o cara que estava me fazendo parar de chorar e ficar bem. Mas eu percebi que a diferença de todo mundo pra ele é que ele nunca tentou me dar conselhos naquela hora em que eu estava me empanturrando de chocolate, ouvindo uma música fossa e chorando. Nessas horas, ele só me fazia rir. E eu esquecia. Que menina que quer ouvir falar de seguir em frente quando o namoro que ela tanto esperou simplesmente.. acaba?
É, aquele lá, o menino que sempre me provocou e atiçou todos os meus sensos nervosos, ele me entendia mais do que muita gente. Porra, eu percebi que eu sempre precisei disso, dessa certeza de ele-vai-estar-sempre-mesmo-do-meu-lado. E ah, aí eu comecei a correr atrás.
Por que sim, eu já cometi muitos erros; não que ele também não tenha cometido, é só que quando você quer apagar as coisas do passado é muito mais fácil se você simplesmente corrige os seus defeitos. E espera que a pessoa perceba. Mas ele nunca pareceu perceber. E isso começou a me deixar triste.
Meu irmão nunca disse "eu te amo" pra mim. E eu achava isso um absurdo..
Eu falava pra todas as minhas amigas o quanto eu admirava aquele cara, o quanto eu gostava dele, o quanto a gente ficava bastante junto e ria. Eu coloquei ele em primeiro lugar pra mim. E ah, ele nunca me colocou abertamente no primeiro lugar dele. Ele nunca me contava as coisas dele, por que ele estava triste, quando estava; ou o que ele fez no final de semana. E eu também achava isso um absurdo. Toda vez que a gente brigava, eu chorava e ficava numa bad imensa, e ele tratava tudo como se nada tivesse acontecido. E eu acho que foi por isso que eu comecei a fingir que não ligava também.
E o tempo foi passando, e eu desisti de lutar por uma mínima demonstração aberta de carinho que fosse. Eu voltei a ser aquela menina-que-estava-pouco-se-fodendo-para-o-seu-irmão-chato. Eu só não percebi isso. E, de tanto tentar conquistá-lo, eu nunca percebi que eu já tinha conseguido; até que a minha impaciência fez com que eu o perdesse de vez.
É, sabe aquela sensação de conseguir o que você queria, mas descobrir que não era bem o que você queria?
A gente só brigou, muito e muito, seguidamente. Sem fazer as pazes nos intervalos.
E deu que no final eu estava no meu computador fingindo que não ligava por estar daquele jeito, quando meu pai veio conversar comigo sobre meu irmão estar no quarto dele, chorando, por ter desistido de mim.
Chorando por ter desistido de mim.
Hã? (reação um).
Ah, não.. (reação dois).
Merda. (reação três).
Pensa, assim, no desespero. No arrependimento. Na tristeza. E junta tudo.
Eu estava tão cega por precisar de palavras pra acreditar que ele gostava mesmo de mim, que não reparei nas pequenas demonstrações de amor que eu ganhava todos os dias. Quando ele me chamava pra ver um filme, quando ele me contava o que fez ele rir, quando ele me perguntava o que tinha acontecido pra eu estar chorando daquele jeito, quando a gente passava o jantar inteiro rindo de besteiras que só a gente iria entender.. quando a gente ficava sentado por horas conversando sobre nada que importava. Por que só o fato de conversar era importante.
E eu, que sou tão boa em dar amor e carinho, não soube receber.
Então, eu corri atrás dele por tanto tempo pra conseguir algo que eu já tinha. E para acabar com o que quer que restasse.
E, se a minha família não fosse tão densa, ele poderia me dizer, ok, eu te desculpo Tatah, afinal, você é a porra da minha irmã. E nós riríamos.
Mas não, ele tinha que se machucar, que ficar triste de verdade e desistir de ser meu amigo. Mas que merda, as pessoas que a gente ama não deviam desistir da gente, mesmo quando a gente quase as expulsa da nossa vida. E, por mais que eu vasculhe na minha mente, eu não consigo achar um jeito de me redimir. Por que ele parecia tão triste comigo que eu acho que nada vai ser suficiente; nada vai ser bom o bastante pra ele, nada que eu fizer. O desespero vem disso.
Por isso que eu estou escrevendo aqui; ele nunca vai ler, e ninguém vai achar que eu estou escrevendo isso pra que ele saiba. Essa porra de texto é tão sincera que eu não vou nem relê-la, por mais que ela esteja uma bosta. Eu estou triste. Muito.
Estou triste por ter acabado com tudo, e não saber como fazer pra voltar. Eu queria ter coragem pra ir lá, contar isso pra ele, e pedir desculpas. Eu queria que ele não ficasse com a mágoa que eu sei que ele vai ficar de mim, por que ele sempre fica. A idéia de ele magoado comigo por muito tempo me angustia. Eu queria voltar a merda do tempo e fazer tudo diferente.
Talvez ninguém entenda isso; ele entenderia, se estivesse do meu lado, se fosse com outra pessoa que eu tivesse feito tudo isso. Mas, de todas as pessoas do mundo, ele não merecia. E isso só faz eu me sentir cada vez mais e mais sozinha e perdida; sem saber o que fazer.
Bom, então pra todos que não conhecem o meu irmão, e que certamente nunca falariam isso pra ele, eu sinto muito. E ah, eu amo o meu irmão. E nunca desistiria dele.
Me desculpa.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

- um dia tudo vai mudar; (2)

O dia de hoje é quase uma contradição.
Eu acordei sentindo aquela paz e aquela coisinha que perturba a minha paz. Eu amei e odiei sentir aquela sensação de tudo estar acabado. Era pra eu ter chorado muito hoje, lembrado de você e de todas aquelas coisas que me machucam; era pra eu ter pedido abraços o dia todo e não era pra eu conseguir pensar no amanhã. Mas eu quase nem pensei em você. Eu não olhei para o chão pra conter as lágrimas, não perdi o rumo das conversas pra olhar pro céu e procurar a sua lua. Hoje eu senti paz, por tudo finalmente ter mudado; e me incomodei, por ter mudado tanto.
Eu acho que nunca vou me conformar com o jeito como as coisas passam. Por mim eu viveria para sempre as mesmas épocas, experimentaria e analisaria cada detalhe, cada jeito de fazer as coisas, cada rumo que eu poderia dar à minha vida. Eu odeio o jeito como ninguém espera eu decidir que cansei da minha vida desse jeito, antes de revirá-la; odeio a nostalgia que me persegue e talvez sempre perseguirá. Um dia tudo vai mudar, eu sempre digo, pra me convencer que eu consigo mudar, e aceitar que o resto mude, pois ele sempre muda.
E quando eu acordei hoje e percebi que eu não ia me desfilar em lágrimas por você ter me abandonado, eu me senti completa, em paz; e quando eu percebi que sim, a nossa história ganhava um final mais definitivo do que nunca, eu quis voltar. Eu sempre quero voltar.
Por que eu ainda amo você com todas as minhas forças, e eu sinto falta de quando eu podia deixar você tomar conta disso. Eu ainda amo você, mas esse amor não é mais seu. Você não pode mais fazer dele o que quiser. E eu amava deixar que você o dominasse.
Apesar de ser um alívio não chorar hoje, as esperanças morrem junto com as lágrimas, a partir do momento em que aquela parte do meu coração que acordou com o seu amor dorme de novo. E eu sou péssima nesse negócio de perder esperanças. Chegou o dia de tudo mudar, afinal. E eu esperava me sentir de qualquer jeito, menos assim, tão dividida. Mas, por mais que me doa isso de colocar um fim em tudo, se eu pudesse escolher, dessa vez, eu não voltaria. Eu não deixaria o que eu sinto controlar as minhas decisões, eu pensaria no que é melhor pra mim; e eu sei que eu não aguentaria reviver a sua partida mais uma vez, por mais que eu reviva a sua presença mil vezes. E é isso que vai fazer essa minha paz não ruir com o tempo.
E hoje foi quase uma contradição, por que eu não deixei que ela se concluísse. Eu segui em frente, olhei pra trás; mas foi só por um momento.
Agora só me resta olhar pra frente.

sábado, 4 de outubro de 2008

- dessa vez, não.

Eu odeio fases. Elas são tão instáveis quanto eu. Cansam, mudam, vêm e vão, e não perdem permissão a ninguém. Quando eu percebo, eu estacionei e todos foram na frente. 'Ei, voltem aqui, eu ainda não me cansei de vocês', eu digo e ah, eles nunca voltam, e eu sempre fico ali me perguntando qual foi o meu erro. E tudo se torna muito mais cruel com a mania que todos têm em dizer 'pra sempre' o tempo todo; pra sempre isso, pra sempre aquilo, pra sempre ao seu lado; e eu fico pra sempre acreditando num pra sempre que nunca vem. E quando eu percebo, oh, passou, era só uma fase; uma porra de fase. E todos já viraram a esquina e já estão vivendo outros pra sempres de alguns meses de duração, enquanto o meu infinito é barrado por tantas lembranças de fases que eu não esqueci. Fases, fases fases. Eu não quero fases. Eu preciso de alguma coisa um pouco mais eterna do que um 'te amo hoje e sempre, mas só por enquanto tá?'; alguma coisa que dure tempo suficiente pra se tornar inesquecível, mas que não atormente só a mim. Que deixe saudades em todos que me disseram pra sempre. Que seja recíproca, intensa, que não me deixe chorar de saudades; que exista pra sempre na minha vida.

(tô com raiva.)