segunda-feira, 27 de outubro de 2008

- capítulo um;

Sarah vislumbrava o mar aberto à sua frente. Ele parecia pronto para abraçá-la, e ela suprimia a vontade de jogar-se a ele, ínfima, em meio às ondas imponentes; apenas uma peça simplória daquela imensidão. A praia calma reduzia-se a uma linha rosada e distante, à medida que a canoa de madeira se afastava rumo ao norte. O remo pesado afrontava as águas, impulsionando a canoa para frente. Sarah permanecia de pé, equilibrada, os olhos semicerrados pelo sol, mirando o horizonte, uma linha contínua azul-marinho, interrompida apenas pelo vulto de uma ilha.
Seu pequeno corpo vibrava de ansiedade. Apesar de seus dezesseis anos, sua aparência tapeava as pessoas; o rosto infantil e o corpo não desenvolvido contradiziam sua mente amadurecida. A pele morena, marcada pelo Sol, parecia ter brilho próprio; os cabelos desgrenhados presos num coque baixo enalteciam seu rosto quadrado e seus lábios robustos.
A ilha parecia mais próxima agora. Sarah sabia que a aparente proximidade era enganadora, e que demoraria muito ainda para chegar em seu destino; permanecia despreocupada, planejara e estudara por muitos anos essa pequena travessia. Não ia se desesperar agora.
Contrastando com a suavidade das águas contornando o remo, um obstáculo chamou a atenção de Sarah. O instrumento colidira com algo resistente e preso à areia; mesmo tão distante da maré, a praia era famosa por isso, sua profundidade ia aumentando vagarosamente, tanto que Sarah quase que poderia alcançar o chão se pulasse. Fincou o remo na areia para que a canoa parasse. Olhou para os dois lados, examinou o fundo, atenta. Então, despiu-se.
Sua roupa de fibra leve e rica seria inútil e incômoda nas águas. Por baixo, roupas velhas e escolhidas para a necessidade de entrar na água. De súbito, mergulhou habilmente no mar, e a água lambeu carinhosamente seus cabelos; aos poucos o corpo ajustava-se à temperatura fria; ela não sentia dificuldade em abrir completamente os olhos. Dirigiu-se sem pressa ao obstáculo, segurando a respiração sem dificuldade. Apenas um pedaço era visível; a maior parte da caixa de madeira escura estava soterrada. Sarah tirou uma pequena lâmina que trazia amarrada à cintura, pôs-se a cavar rapidamente; com um grande esforço pôde retirar a caixa inteira. Voltou à superfície, a caixa segura em suas mãos, surpreendentemente leve. Subiu na canoa e procurou por um fecho na face frontal da caixa, decorada habilmente com flores e arranjos. Não havia nenhum.
Esquecera de seu objetivo, ansiosa para examinar a caixa; esquecera que não dispunha de muito tempo. Logo, vozes masculinas fizeram-se ouvir; e, ao olhar à sua volta, percebeu o que a curiosidade lhe custara: mais uma tentativa perdida.Cinco barcos com três homens cada um a rodeavam, e um deles já havia amarrado uma corda ligando seu barco à canoa de Sarah. Não fizeram perguntas, Sarah já sabia o que faziam ali. Suspirou, frustrada, e resistiu ao impulso de lançar aquela caixa ao mar. A canoa foi puxada pelo barco, não para o norte, não para o seu destino; mas de volta à sua simplória existência na praia.

*
Jad sucumbiu ao choro. Seu rosto já marcado pelo tempo contraiu-se; suas mãos enrugadas tremeram, seus olhos miúdos molharam a face. Ela olhou para o marido, desesperada.
- Mandou todos os seus homens?
- Mandei – a voz dele revelava impaciência.
- Mandou procurarem em direção à ilha?
Apenas um murmúrio de afirmação como resposta; marcado pela frieza desumana que se via em seus olhos. Nenhuma palavra de carinho ou consolo, apenas sua presença insípida; irredutível.
- Acha que vão encontrá-la, Marcel? – disse Jad entre soluços, ávida por uma palavra de esperança.
Um suspiro cansado. Nenhuma emoção.
- O mar é grande.
- E se ela chegar na ilha? E se ela encontrar... – Jad parecia aterrorizada em pensar na hipótese.
- Chega, Jad – não era um pedido, tampouco algo para tranqüilizá-la; ele apenas desejava que ela parasse de perturbá-lo.
- ... o que será de nós, meu Deus? – ela pareceu não ouvi-lo.
Marcel chutou o pequeno banco de madeira à sua frente. Seus olhos incharam de fúria incontida.
- Cale a boca! – ela olhou para ele como se acabasse de perceber que ele estava ali. Suas lágrimas rolaram sozinhas. Levantou-se.
- Você se tornou mais frio e duro que uma pedra de gelo. Um monstro. Atroz como aqueles homens que tanto desprezava na guerra! – ela saiu sem olhar para trás, o corpo curvado pela velhice e sacudido pelo que restou de seus soluços. Marcel arfava. Suas mãos grossas permaneciam contraídas, mas seus olhos já não demonstravam nenhuma emoção.
Na sala contígua, Jad sentava na mesinha de centro, e rezava por perdão a um Deus que não acreditava mais; apenas pela carência de expor suas lamúrias. E pedia, sem fé, mais a si mesma do que a alguma divindade; que Sarah não chegasse àquela ilha.

*
Sarah desvencilhou-se do aperto do soldado no braço. Ele mantinha-se próximo demais às suas costas, e ela sentia seu cheiro podre de fumo e sua risada maliciosa. Ele a conduzia até a porta do lugar onde menos desejava estar; sua casa.
A mansão branca brilhava ao Sol que já descia no céu. O estábulo enorme do outro lado do lago não se comparava à monumental construção à sua frente, antiga mas renovada; em ótimo estado. Ao avistar a velha senhora correndo em direção à Sarah, o soldado se afastou. Jad abraçou a filha com fervor, mas ela ignorou o abraço; continuou impassível agarrada à caixa já seca pelo Sol.
Jad conduziu a filha ao seu quarto, e a deixou sozinha. Sarah deitou-se em sua cama, frustrada; enfiou a caixa na gaveta de sua penteadeira e suspirou. Podia até contar os segundos que faltavam. A porta se abriu com estrondo. Seu pai, cheirando a uísque e tomado pela fúria, avançou para ela com uma cinta na mão.

*
Naquela noite, Sarah não dormiu. Suas pernas ainda ardiam com a surra que levara no final da tarde. A Lua já ia alta no céu, mas seus olhos bem abertos examinavam a caixa à sua frente. Fechada. Nenhum cadeado. Apenas uma tampa pregada à caixa tão fortemente que nenhuma fresta lhe era perceptível. As cabeças dos pregos afundados na madeira estavam enferrujadas, e Sarah perdera horas limpando todo o limo que encobria a caixa.
Vasculhou suas coisas, mas não encontrou nada que pudesse abrir o pequeno baú; desceu pé ante pé as escadas cobertas de veludo vermelho, e saiu pela porta dos fundos da cozinha; sem fazer o menor ruído, a caixa aninhada em seus braços frios.
Respirou o ar fresco da noite. Sentiu a grama roçar seus pés descalços, ouviu o murmúrio incessante dos grilos; pressentiu o cheiro de jasmins. Aproximou-se do lago, que lhe parecia um grande espelho imóvel, reverenciando a Lua; o contornou, em direção ao estábulo. Distinguiu, no escuro, o vulto da oficina de seu pai, contígua à construção de madeira clara.O estabelecimento cheirava a mofo. Sarah prendeu a respiração enquanto acendia o pequeno lampião pendurado na porta encostada; entrou silenciosa na oficina, em busca de alguma ferramenta útil. Não teria coragem de serrar a caixa, precisava de um pé-de-cabra ou algo parecido... abriu inúmeras caixas de ferramentas situadas nas prateleiras atrás do balcão, mas não encontrou nada que servisse. Desanimada, abriu um armário encostado entre a porta e o canto da parede; seu rosto brilhou de alegria ao encontrar um grande pedaço de ferro moldado exatamente como precisava; apoiou a caixa cuidadosamente no balcão e pegou o ferro com as duas mãos. Precisaria de muita força. Pegou um serrote no meio da sessão de marcenaria, abriu uma pequena fresta onde pudesse encaixar o ferro. Colocou a caixa no chão, posicionou-se, e encaixou a ponta do pé-de-cabra na fresta aberta pelo serrote. Pressionou para baixo, apoiando todo o seu peso. A caixa rangeu.
Pressionou de novo. Sentiu a tampa levantar um pouco.
Respirou fundo, tirou os cabelos suados do rosto. Pressionou mais uma vez.
A tampa da caixa voou, foi parar atrás do balcão, fazendo estardalhaço. Sarah agarrou a caixa e correu atrás da tampa, ágil; seus passos leves estavam acostumados com a noite. Em alguns minutos, estava de volta ao quarto, a caixa aberta sobre as mãos pequenas.
Sentou-se em sua cama, feliz por finalmente poder ver seu conteúdo. Ao vislumbrar uma pilha de papéis amarelados completamente preenchidos por palavras, a lápis, desapontou-se. Folheou-os, e leu a primeira folha.

“Ela será fruto de uma história de amor.
Será morena, bonita, com lábios carnudos e cabelos presos.
Participará de vários tipos de misticismo, mas nunca acreditará em nenhum deles.
Saberá se comportar diante dos outros, mas terá medo da intimidade.
Será egoísta, e seu orgulho será um mártir.
Mentirá, e suas mentiras a aprisionarão.
Seus arrependimentos serão seus castigos.
Sofrerá, mas também será feliz.
Presenciará desgraças, mas nunca se tornará uma pessoa amarga.
Terá uma vida marcada por segredos.
Temerá a morte, e todos os desconhecidos.
Terá piedade, ansiedade e nunca conhecerá a paz.
Demorará a conhecer o amor, e quando o conhecer, não saberá usá-lo.
Será criada sob o gelo, mas nunca perderá a esperança.
Amará a magia, as histórias infantis e o sol.
Aprenderá a muito custo que nem todas as histórias têm um fim concreto, a maioria se perde no começo de outra.
O passado será o seu maior inimigo.
Escolherá a ignorância à ciência das verdades terríveis.
Verá tempestades em garoas, chorará lágrimas inúteis.
Sorrirá de verdade pela primeira vez aos dezessete anos.
Desafiará o destino.
Morrerá tarde demais.”

Uma assinatura marcava o final daquela profecia, legível e simples.

”Marise”.

4 comentários:

  1. Nada mal, Tai!!! Desde já, torço por sua heroína. Doida para ler os próximos capítulos. Guarde-os em local seguro, "irás publicar um dia". Essa é a outra profecia.

    Sucesso, menina! Vc vai onde quiser ir.

    Bjão!

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  2. Me lembra muito aqueles livros de histórias inglesas que eu cresci lendo.
    Essa heroína... seu alter ego?

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  3. eu perdi completamente a inspiração.

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  4. Ahh como eu quero férias (2). Não vejo a hora dessas benditas aulas acabarem! haha Sim amor, eu ando sumida. Não é a primeira pessoa a dizer isso! Fiquei um tempo sem computador por causa de um vírus, depois algumas provas e acabei ficando ausente por um longe tempo! haha Sim, eu fui lá. Eu perguntei para a Ika sobre você, e ela disse que você já tinha ido embora ): Eu queria ter te visto, mas ok... Não se deixe abalar, faço das suas as minhas palavras haha. Tenho adorado essa sua história, respira fundo e chama a inspiração ein? Quero ler o resto haha :D Se cuida querida. :*

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