quarta-feira, 15 de outubro de 2008

- quarto 336;

George pegou algumas flores na floricultura da esquina e arrumou a gravata cinco vezes. Pegou uma colônia barata no porta-luvas e ensopou o pescoço. O cabelo bem arrumado não combinava com seus olhos cansados e precisando de sono, fato que ele constatou com uma rápida olhada no retrovisor. Animado pela proximidade da visita, ligou o carro.
Não usava o carro antigo já havia anos. O escort vermelho forte chamava a atenção das pessoas na rua não só por sua cor elétrica, mas também pela grande quantidade de fumaça que produzia e pelo barulho ensurdecedor que se alastrava por vários quarteirões. George bufou, satisfeito. Estava tudo perfeito; o cheiro de naftalina do paletó, a colônia barata, os cabelos puxados de lado, até os olhos cansados de quem acaba de ter um dia duro de trabalho. Ele só esperava que o carro conseguisse chegar até lá.
Dirigiu o mais vagarosamente possível, com os olhos lacrimejantes por causa da fumaça. Já era quase duas e meia da tarde quando inclinou o carro no estacionamento da clínica mais cara da cidade. Checou os sapatos, que já apertavam; impecáveis. Apertou o botão dez do elevador.
Apesar da cor amarelo claro do terno, que normalmente causaria comentários maldosos ignorados por George, ninguém parecia reparar nele. Ele adotara uma postura sorridente e convidativa, e, a cada andar em que o elevador parava, mais pessoas entravam; e nenhuma lhe dirigiu sequer um bom dia. Mas George era forte. Ele não ia desistir agora.
Saiu silenciosamente, de nariz empinado, quando chegou ao décimo andar. Seu olhar passou o primeiro corredor sem o mínimo sinal de reconhecimento, se demorou um pouco mais no segundo, cheio de saudade; e, por fim, ele virou no terceiro corredor à esquerda, apertando os nós dos dedos, tirando uma mecha grisalha do rosto. A diretora da clínica esperava-o na maior sala do corredor.
Ao vê-lo, ela engasgou-se com uma risada. George não levou a sério, risonho, e deu algumas voltas em torno de si mesmo para que ela pudesse apreciá-lo.
- O que seria esse.. figurino? - disse ela, os olhos apertados de divertimento.
- Era sobre isso mesmo que eu gostaria de falar com você, Roberta - disse ele, nem um pouco abalado, parecendo orgulhoso de si mesmo. A um sinal da diretora, sentou-se.
- O estado de Hilda não mudou nem um pouco. O que poderia te trazer aqui além disso? - ela sentou-se e assumiu a expressão mais séria que conseguiu no momento.
- É exatamente sobre o estado dela que eu gostaria de conversar.. Olha, Roberta, ela já está aqui faz três anos e ainda não me reconhece. Eu sei que pode ser até irreversível, mas eu acho que posso ajudá-la. Eu preciso. - ele passou a língua nos lábios secos. Roberta mordeu a língua.
- E vestir-se assim ajudaria Hilda como? - ele odiava a ironia que ela usava ao considerar as suas idéias, que foram tantas ao longo dos anos. Mas George sempre soube compreender, e, ao olhar as pilhas de papéis de cada pessoa que ela ajudava, ele aceitava, e sorria.
- Eu me vesti assim no nosso primeiro encontro. Até a colônia é a mesma, as flores.. a gente estava numa fase de festas estranhas, sabe? E eu acho que talvez, se eu a levasse até o lugar do primeiro encontro, até o carro é aquele antigo sabe, em que nós demos o primeiro beijo..
- Hilda não pode sair da clínica. Ela está sob cuidados médicos. - Roberta tivera um dia difícil.
- Ela está sob cuidados médicos faz três anos! E eu sou a única pessoa que ela não reconhece..
- Não podemos fazer mais nada, George, só esperar.
Ele sentiu-se impotente, fraco. Levantou-se e sua cabeça girou. Engoliu as lágrimas. George era forte.
Dirigiu-se de volta ao segundo corredor. Recompôs-se na frente da porta do quarto 336, olhando para o desenho que sua mulher, Hilda, fizera. Traços de criança. Depois de trinta e dois anos de casados, ela voltara a ser criança em alguns poucos minutos, naquele maldito dia em que a chuva arrastou o carro para um barranco. George escapara ileso. Observou a caligrafia infantil em que ela escrevera "casa" sobre a porta do quarto. Ela mal se lembrava daquele sobrado rosa claro que eles compraram depois de trabalharem em dois empregos cada um por seis meses, onde moraram por quase trinta anos. A clínica cinza, com vidros embaçados que mal deixavam que ela visse a rua, era sua casa agora..
Ele bateu na porta. A enfermeira o convidou a entrar, Hilda estava dormindo. Ela acordou ao ouvi-lo sentar ao seu lado.
- Larry?
- Oi, Hilda. Como você está hoje?
- Ah, eu senti a sua falta, Larry. Você me trouxe flores! - Seu rosto enrugado abriu-se num sorriso iluminado. A enfermeira deixou as flores em um vaso ao lado da cama, e saiu.
- Você está linda hoje, meu amor.. Mas nós não combinamos que você me chamaria de George?
- A enfermeira me disse que você é George hoje, Larry. Mas eu não me lembro de nenhum George. Eu me lembro de Larry.
- Eu sei, meu mel. - George fechou os olhos cansados, e tirou o paletó ridículo. Ela nem percebera.
- Mas sabe que a história que você me contou ontem era muito bonita? Eu não me lembro. Do que mesmo você falava? - seus pequenos olhinhos azuis faiscaram.
- Era a história de um homem que fazia sua mulher apaixonar-se de novo por ele todos os dias. E.. - ele parou. Ela estava com o olhar perdido, evidentemente perdera a atenção. George suspirou, e pegou a mão pequena e branquinha entre as suas.
- Você ficará comigo para sempre, Larry? - ela se aninhou entre seus braços. George a sentiu trêmula, e a apertou forte.
- Eu te amo, minha flor.
- Então você fica comigo esta noite?
- Até que você durma e sonhe comigo.
Não demorou muito, Hilda descansava, aninhada nos braços do seu marido, que, para ela, aparecera apenas três anos antes. George prometeu a ela que não a abandonaria, que faria com que ela o amasse de novo como amou naquele primeiro encontro. Mas ela não estava mais ouvindo.
Ao acordar, algumas horas mais tarde, Hilda sentiu que George não tinha ido embora.
- Você volta amanhã, Ben? - George acordou, sobressaltado.
- Mas é claro. Eu sempre voltarei.


(eu escrevi isso pensando numa frase que ouvi em uma música. "há mais histórias de amor do que o homem pode contar..")

2 comentários:

  1. é..realmente há muito mais histórias de amor que um homem pode contar...
    ...As minhas são mais pra piadas do que pra histórias, mas tudo bem....
    rsrs

    Confesso que num deu tempo pra ler toda a postagem, tá corrido tudo aqui! Mas deve ter ficado mt bom!

    Bjoooo!!

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